quinta-feira, outubro 14, 2004

Isto parece brincadeira, mas não é...

O SILÊNCIO DAS PIMPINELAS

Isto é, às vezes esqueço-me de mim
e surpreendo-me quando me lembro do infinito
silêncio das pimpinelas. Das pimpinelas verdes
desarrumadas nas latadas da vinha por sobre
as janelas verdes da casa. Das pimpinelas persistentes
de que ninguém particularmente cuidava
e nasciam, morriam e renasciam em estações incógnitas
e sempre verdes como as vinhas das latadas. Pimpinelas
aguadas - como devem ser todas as pimpinelas -
e verdes para se confundirem com as sombras verdes
de todos os vinhedos do meu avô. Verdes e silenciosas
como as folhas dos vinhedos que deitavam
sombra no quintal e cheiravam a nada, como aliás creio
devem cheirar todas as outras pimpinelas que se misturam
com outros vinhedos nos inúmeros quintais
de todas as outras velhas casas rotuladas de vizinhança.

Pimpinelas que só deixavam de vestir
a sua importância aguada e verde, às vezes branca,
quando chegava a páscoa e a mãe começava a falar
de inhame. Nessas alturas faltava-nos água na boca
e iniciava-se o ciclo da transformação da festa da pimpinela
no dia a dia do inhame. Então a mãe ria-se e o pai disfarçava:
lá venha agora o inhame, resignando-se, enquanto o prato
recebia a cor lilás e a gente varria para trás da porta
as esquecidas folhas do vinhedo.

José António Gonçalves (poeta versus humildade)
(in «As Memórias da Casa de Pedra»,
Ed. Arguim Editora Regionalista, 2002)