domingo, fevereiro 08, 2004

Adília Lopes - uma mulher e framboesa


Memórias das Infâncias





Gostávamos muito de doce de framboesa

e deram-nos um prato com mais doce de framboesa

do que era costume

mas

a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa

para nosso bem

porque estávamos doentes

esconderam colheres do remédio

que sabia mal

o doce de framboesa não sabia à mesma coisa

e tinha fiapos brancos

isso aconteceu-nos uma vez e chegou

nunca mais demos pulos por ir haver

doce de framboesa à sobremesa

nunca mais demos pulos nenhuns

não podemos dizer

como o remédio da nossa infância sabia mal !

como era doce o doce de framboesa da nossa infância !

ao descobrir a mistura

do doce de framboesa com o remédio

ficámos calados

depois ouvimos falar da entropia

aprendemos que não se separa de graça

o doce de framboesa do remédio misturados

é assim nos livros

é assim nas infâncias

e os livros são como as infâncias

que são como as pombinhas da Catrina

uma é minha

outra é tua

outra é de outra pessoa



In – Adília Lopes –OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pag. 107, Ed. Mariposa Azual, Lisboa 2001